Convite
retirado de O Tripeiro, n.º 6 - Vol. I (maio 1982)
Sociedade do Calhau
(Provisório)
Bonfim – Porto
Os
pressupostos e razões desta publicação:
O
tema, embora não totalmente enquadrado com os propósitos deste blogue, levaram a
4 razões fundamentais que motivaram a apresentação da extinta associação nesta
página.
1º
- Sendo natural do Bonfim e a vivência da minha juventude próxima do local da
sua sede, bem como da minha actual residência se encontrar adjacente à sede
desta associação;
2º-
Memórias retiradas de uma edição de um livro de família, cujas referências à
Sociedade do Calhau me mereceu a maior das atenções;
3º-
Recente contacto com vizinha e autora do mesmo tema, de um trabalho pessoal da
Dr.ª Maria José Moutinho Santos, da qual recebi cópia de um documento, sobre o
assunto em questão, editado em “O Tripeiro”, n.º6, volume I de 1982;
4º
– Assunto praticamente desconhecido de todos e que merece ser deixada como memória
futura, da sua existência;
Google Maps - localização na Rua do Bonfim - Porto
A
sua história:
Felizmente
esta narrativa chegou até a actualidade, através da memória obtida pela geração
seguinte dos interlecutores da Sociedade do Calhau, isto é através dos seus filhos
e que os então ainda vivos rondarão a idade entre os “setenta e oitenta”.
Filhos
estes que guardaram nas suas lembranças as histórias contadas desta Sociedade,
por seus pais, que foram elementos participativos nesta associação recreativa e
que perdurou por um período aproximado de duas décadas de vivência.
Tudo
terá começado nos inícios do séc. XX, em que a sociedade portuense se
encontrava em evolução, colmatando a pobreza das actividades culturais e dum
quotidiano pacato com a procura de alternativas através de associativismos por
parte da gente local para combater o ócio e a pretexto de soluções por novas
diversões.
O
País atravessava um período de transição entre a Monarquia e a Republica, para
esta gente comum e com a corrente republicana em curso, pelas notícias que eram
divulgadas, permitiam-lhes tornarem-se diferentes e mais participativos.
Era
o resultado de um quotidiano simples, e estas associações estavam centralizadas
em áreas localizadas da cidade e organizadas em grupos de amigos.
À
época, a sociedade masculina era bem vincada com a presença exclusiva de
núcleos restritos para homens, e no Bonfim esta sociedade recreativa se
centrava com Gente de certos bens, vizinhos e amigos, na sua maioria
industriais, comerciantes ou com atividades cuja vivência lhes permitia o ócio,
o recreio e o lazer.
Esta
história que iremos descrever servirá de memória futura da vivência nos inícios
do século, para a cidade do Porto e directamente para a freguesia do Bonfim,
pois foi na rua com mesmo nome em que tudo terá começado.
Antes
da sua verdadeira fundação era intitulada de “Grupo do Calhau Provisório” e pouco
depois, em Novembro de 1901, foi fundada como “Sociedade do Calhau” com sede na
Rua do Bonfim, localizada nas traseiras do rés-do-chão do nº. 194/196, edifício
este que ainda hoje existe, mas transformada em habitação moderna, como muitas outras
requalificações de que a cidade do Porto se vê transformada neste séc. XXI.
Este
espaço estava associado a uma carpintaria cuja personagem era proprietário,
José Maria Ferreira, pessoa de grande dinâmica e o grande impulsionador desta
agremiação.
Mas
tudo terá começado numa sala das traseiras da mercearia de José Alves Leite, do
nº. 216, onde se reuniam os seus fundadores e tinham o costume, ao serão, de se
encontrarem e ficarem em amena cavaqueira a jogar cartas, conversar e jogar o
“Solo”.
foto de José Maria no seu aniversário, em 1910
retirado do livro de família "Origens"
Esta
constância diária e a falta de diversão terá sido o motivo de terem despoletado
a criação de uma associação e por sua vez terem incumbido o José Maria à compilação
das regras da fundação da sociedade e, ao qual numa das sessões terá dito
“vamos então assentar o primeiro calhau
no alicerce da nossa Sociedade!”.
Terá
sido provavelmente com esta frase que o nome da sociedade se denominou passando
a designar-se “Sociedade do Calhau” e que a partir da sua constituição cada
sócio terá passado a usar na sua lapela um simbólico e pequeno “calhau”
engenhosamente suspenso de uma rede feita em croché.
Mais
tarde este símbolo seria substituído por um mero cartão de identidade tornando
mais opaca a sua identidade.
“(…) Feitos estes estatutos, criado um hino, organizadas as cerimónias
de inauguração, das quais constava um baile de máscaras que obteve um enorme
sucesso, começaram as actividades ordinárias.
Diariamente,
ao serão, juntavam-se os sócios para a habitual conversa e para a partidinha de
cartas. Os ganhos à mesa do jogo eram destinados a um fundo comum, utilizado
para custear saborosas ceias, (confeccionadas divinamente pela mulher do dito
José Maria) e piqueniques em certos domingos, a Valongo e a Gondomar.
Os
saraus dramático-musicais, de que se destacavam os de sábado de Aleluia, em que
participavam sócios, familiares e amigos, constituíam os pontos altos das
realizações culturais.
Por
várias vezes também, foram feitas homenagens a grandes figuras do tempo, como,
por exemplo, Guerra Junqueiro e Duarte Leite. (…)”
foto de conjunto - retirado do livro de família "Origens"
Para
além destas actividades mais abertas à comunidade a sociedade contemplava
muitas outras acções com espírito de lazer, de recreio e muitas vezes de
diversão.
Um
destes exemplos proveio da imaginação de José Maria, derivada da sua arte de
carpintaria e da utilização da sua maquinaria em que terá inventado uma pequena
caixa de “fazer dinheiro”.
Era
uma caixa em madeira constituída por dois cilindros, que por um processo primitivo
mas engenhoso permitia inserir-se papel branco, com o tamanho de uma nota, e
fazer sair por outra ranhura, notas verdadeiras que já lá dentro se encontravam
reservadas.
Ora,
com este mecanismo os elementos da sociedade saiam pela cidade do Porto a
apresentarem a sua máquina de “multibanco” que causavam espanto, duvidas e
inveja.
Tendo
em conta que um dos sócios trabalhava num banco, permitia-lhes com que as notas
que saiam desse mecanismo se tornavam novinhas e perfeitas, demonstrativas da
sua veracidade, que por vezes nos seus eventos ao accionarem a demonstração da
sua invenção para providenciarem o dinheiro para efeitos de pagamentos, ora, demonstravam
a desconfiança e a relutância na recepção por parte dos revisores dos
transportes públicos e lojistas causando dúvidas da sua autenticidade.
Esta
pequena máquina teve como principio apenas a diversão para brincadeiras entre
os amigos através destes pequenos actos. Porém, a novidade, a curiosidade e o
êxito alcançado fez daquela máquina de dinheiro o “centro de uma prodigiosa
encenação”. A finalidade era em atrair indivíduos ambiciosos, lorpas e sem
escrúpulos para enriquecimento pessoal, de forma fácil e rápida.
Este
“isco” de atracção de riqueza foi concebida com o auxílio dos sócios e alguns
amigos, que por parte de Zé Maria montou um esquema imaginativo e que a
Sociedade do Calhau promoveria na conquista de candidatos à fortuna, através da
realização de eventos na sua agremiação com actividades “secretas”, como de uma
poderosa “rede” oculta existisse e cuja encenação servia de pretexto a
brincadeiras entre amigos e por estranhos ávidos de fortuna, que por vezes se
estendiam ao estrangeiro.
Estas
personagens eram, em regra, angariadas pelos sócios, amigos ou familiares que
se faziam como assunto de partida e como forma de aproximação, através de
pedidos de empréstimo ou em desabafo de ambição de dinheiro, sendo numa primeira
fase analisado o seu grau de aspiração e ambição ou de lorpice que permitisse a
convocatória de um evento por parte da associação.
Com
o desenrolar do estudo de cada personagem era-lhes permitido verificar se reuniam
as condições necessárias, como suficientemente ambicioso ou suficientemente
parvo, para o preparar e de modo cuidado, com a insinuação de possibilidade de
conseguir o dinheiro pretendido de forma a serem criadas as expectativas da
realização do seu sonho de grandeza promovendo a encenação necessária para esse
efeito.
Dos
relatos ocorridos fazem referências a 51 pretendentes à fortuna e que
culminaram em processos com sessões nocturnas no edifício traseiro da Rua do
Bonfim e sede da Sociedade.
Estas
sessões, de autênticas encenações, traziam ao Porto propositadamente, amigos e
familiares dos sócios e de figuras de maior relevância, tais como de um
governador civil. É narrado que esteve prevista uma figura de grande relevo
político da época em uma das sessões mas que não terá ocorrido.
Pode-se
concluir que ao longo da sua existência, a associação deparou-se com todo o
tipo de indivíduos desejosos de riqueza, desde o simples humano que a todo o
custo pretendia a melhoria da sua condição de vida, como por comerciantes e
homens de negócios desejosos de aumento do seu poder económico, passando por
pessoas endividadas e estudantes sem vintém.
Escolhido
o candidato, era-lhe revelada a existência de uma “Sociedade Secreta” com fins
de ajuda humanitária para homens com coragem e ambição e que para obter essa
ajuda bastaria cair nas boas graças do Barão, o presidente dessa sociedade.
Para
tudo isto se processar bastaria uma “carta de recomendação” de um dos seus
melhores amigos ao que este candidato se tornaria intitulado “Porta”, designação retirada da
expressão popular “Burro como uma porta” e que quantas mais cartas de
recomendações arranjasse mais influência tinha em todo o processo.
(…) Naturalmente que o “peixe” era encarecido, regateado, mas a pretensão,
obviamente, era sempre aceite, acordando-se de imediato com ele a prova de
avaliação da qualidade do candidato a iniciado. Estavam em voga as sociedades
iniciáticas, como a Maçonaria e era evidente que uma tal “sociedade” e “com tal
poder”, não podia ser aberta a qualquer um. Depois de uma pretensa conferência
com o secretário da sociedade, Zé Maria, ficava marcada, em definitivo, a
iniciação para dali a uma semana.
Suponho
que foi na sequência do primeiro destes “voluntariosos associáveis” que
germinou a ideia do “décor” que se desenvolveu em casa do Sr. Zé Maria. O
terreno das traseiras da sua casa desenvolvia-se em dois socalcos, um ao nível
do rés-do-chão e outro, mais recuado, ao nível do primeiro piso. A conformação
do terreno nas traseiras permitiu uma utilização adequada aos objectivos do “Grupo
do Calhau”. No espaço do quintal, existia um barracão que foi transformado pelo
Zé Maria para os desígnios da Sociedade.
Do
longo corredor, já anteriormente referido, acedia-se ao local secreto da
iniciação. Desembocava-se num sala em que a parede do fundo era preenchida por
um pequeno palco, adequado à dimensão do espaço disponível. À semelhança de
qualquer teatro, o palco tinha cortinas e um fosso sob o estrado, para onde se
entrava por uma pequena e estreita porta lateral. Tudo com muito pouca ou nenhuma
luz natural e, à noite, iluminado apenas pela chamas bruxuleantes de algumas
velas, que a luz eléctrica só veio mais tarde.
O
mestre carpinteiro era um verdadeiro artista e, com a sua extraordinária
habilidade manual, construiu um esqueleto em peças de madeira, que para o tipo
de material e para a época, era muito real. Engenhosamente articulou-o com
pequenas ligações em arame, de tal modo que, se suspenso pelos ossos dos ombros
e da cabeça, à semelhança das marionetes, podia mexer-se todo, quando convenientemente
manipulado por intermédio das linhas pretas, que lhe estavam ligadas.
Paralelamente e aproveitando uma raiz de figueira, com um feitio vagamente
parecido com uma caveira, o Zé Maria, melhorou-lhe as semelhanças, deu-lhe uns
toques de formão e transformou-a no “Cranéu
do nobre ancião fundador da Sociedade”, objecto que foi “dramaticamente”
enquadrado num armário de vidro, tipo santuário e que passou a ser objecto de
“culto obrigatório” dentro da sociedade.
Conhecida
uma data e havendo um candidato, desenvolvia-se uma preparação frenética da
recepção ao futuro “iniciado”, o “Porta”. Pendurava-se o esqueleto no palco,
levava-se cal e terra para o fosso do palco, colocavam-se as velas de modo
estrategicamente calculado e preparava-se “o pacote do Porta” – um
significativo volume devidamente atado e lacrado, etc..
No
dia estipulado, sempre a um sábado, era colocado, na porta de entrada do
edifício, um letreiro anunciando: “Hoje há Porta!” Já muito antes da hora
marcada, propositadamente nocturna, os “Calhaus”, posicionados no local do
encontro, no terreiro do actual Campo 24 de Agosto, cavaqueavam em pequenos
grupos, convenientemente dissimulados entre a vegetação aí existente,
aguardando a chegada do “Porta” que, de modo invariável, chegava com grande
antecipação e denotando compreensível nervosismo.
Faziam-no
sofrer de modo penoso, atrasando a chegada do emissário dos “Calhaus”, enquanto
se deleitavam a vê-lo, muito oprimido, esfregando as mãos, desesperado,
passeando-se, nervosamente, dum lado para o outro. Os espectadores regalavam-se
com a cena e com a antecipação da barrigada de gozo que iriam desfrutar. Por
fim, “condoídos” com o sofrimento do “infeliz”, lá aparecia o emissário,
devidamente encapotado, chapéu puxado para os olhos, gola de pesado capote bem
levantada, enfim um verdadeiro conspirador! A cara do paciente mudava
radicalmente. Apesar de assumir um ar conspirativo, um sorriso rasgava-lhe a
face de lado a lado.
-
“Disfarce homem! Disfarce! Ninguém nos pode ver aqui e muito menos juntos”,
dizia-lhe o emissário.
-
Tá bem, Tá bem! O que devo fazer?
-
Você vem atrás de mim, distanciado uns bons 50 metros, mas sempre atento àquilo
que eu faço e, o que eu fizer, você imita imediatamente. Não podemos levantar
suspeitas”.
-
Teja descansado que eu faço tudo o que o senhor quiser!
-
Na porta onde eu entrar, você espera uns minutos e depois bate o toque secreto
– três toques rápidos, seguidos de dois toques bem separados, mas isto baixinho
e, finalmente, uma só pancada bem forte. Entendeu?
-
Sim senhor, eu assim faço!
Começava
uma caminhada nocturna, verdadeira odisseia ao longo de cerca de 300 metros,
subindo a Rua do Bonfim, recheada de pequenas peripécias. Sempre que aparecia
alguém e muitas vezes eram outros “Calhaus”, o emissário escondia-se,
cozendo-se com as sombras dos umbrais das portas, atravessando e reatravessando
a rua, vezes sem conta. É óbvio que o candidato a iniciado, o “Porta”, fazia
exactamente o mesmo, perante o gáudio do grupo que, convenientemente afastado, ia
observando toda a cena.
Depois
de um trajecto muito “dissimulado” e “sofrido “e, o emissário fazia a batida
secreta, a porta abria-se e ele desaparecia no interior da casa.
Cá
fora, o “Porta”, olhava nervosamente à sua volta, a ver se alguém tinha reparado
nele, mas, naquele tempo, à noite, com ruas muito escuras apenas iluminadas
pela fraca luz dos raros candeeiros a gás, pouca gente passaria àquela hora, a
não ser os próprios “Calhaus”.
Enquanto
o paciente esperava no exterior, lá dentro desencadeava-se uma intensa
actividade. O operador do esqueleto que não era outro senão o jovem Ruy
Marcelino, ia para o fosso do palco. Um dos “Calhaus” fundadores da Sociedade e
seu Presidente Honorário, Alfredo da Silva Coutinho, conhecido entre os seus
congéneres pelo Barão do Calvário, ia também com ele meter-se lá debaixo e os
outros colocavam-se em posições estratégicas, preparando-se para receber o
visitante.
Alfredo da Silva Coutinho - foto retirada do livro de família "Origem"
Finalmente,
no batente da casa do Zé Maria carpinteiro, ressoavam as pancadas do código. O
emissário encapotado abria então uma nesga da entrada e o nosso “Porta”,
candidato a milionário, por lá se esgueirava, entrando tão dissimuladamente
quanto se possa imaginar nestas rocambolescas circunstâncias. Percorriam então
o grande corredor, apenas iluminado pela nesga de luz das velas, que se escoava
por baixo da porta que, lá no fundo, barrava o acesso à divisão seguinte – a
sala da cerimónia.
A
entrada na sala era tão conspícua como toda as cenas anteriores. Lá dentro,
todos os presentes estavam encapuçados com máscaras feitas de cartuchos
horrorosamente pintados e, sempre em ambiente de grande mistério e pouca
luminosidade. Para dissimular o riso que irrompia em quase todos os presentes,
era constantemente sussurrado ao ouvido do Porta:
- Disfarce, homem, disfarce!
E
o desgraçado fazia como podia para disfarçar o que ele nem sabia quê, nem como.
Entretanto,
o número dos presentes ia engrossando com a chegada dos restantes membros que,
no exterior, tinham estado a gozar o espectáculo da viagem e, ao entrar, todos
iam repetindo o toque da batida secreta.
E
o tempo ia passando, demasiado lentamente para a ânsia do candidato a iniciado.
Sobre o palco, uma mesa na qual se sentavam as duas únicas pessoas de cara
descoberta. Um era o secretário (o Zé Maria) e um outro, o tesoureiro da
sociedade secreta. Ao centro da mesa, uma terceira cadeira de espaldar elevado,
permanecia vazia. Um autêntico palio de igreja, suportado por seis membros
encapuzados que denotavam expectativas, premonizava a chegada de algo muito
solene.
-
E quando começa a cerimónia? Então estamos à espera de quê?
-
Tenha calma homem, Tenha calma! Estamos à espera da chegada do Grão-mestre da
nossa irmandade, o Venerável Barão do Calvário. Ele vem de muito, muito longe,
por uns subterrâneos que passam por baixo do rio Douro e atravessam a cidade
até aqui. Não é por acaso que estamos nesta casa. Tenha paciência que vai tudo
correr bem. Mas pela sua saúde homem, disfarce, disfarce!
O
pobre “Porta” imitava os seus circundantes que, de gola levantada e cara tapada
por um cartucho, passeavam desordenadamente à sua volta. Com frequência
chegava-se um deles junto do paciente e, propositadamente, largava um sonoro
traque que deixava o homem assarapantado, enquanto o guia lhe dizia:
-
Não estranhe, não estranhe, isto é só para disfarçar por causa dos vizinhos...
-
Então e quando começa isto?
-
Tenha calma… tenha calma!
E
toda a gente consultava os seus relógios de bolso, como que preocupados com o
atraso do Grão-mestre, sussurrando e murmurando audíveis comentários entre
eles.
Subitamente
ouvia-se uns ruídos por baixo do palco e toda a gente ficava especada à espera
de ouvir mais.
-
Ele já vem aí! Ele já está a chegar!
Então
os seis membros que suportavam o palio, chegavam-se até junto da pequena porta
lateral do palco. Esta abria-se e, finalmente, de lá saía um cavalheiro, muito
bem vestido, de capa preta com estola, casaca, cartola, luvas brancas e bengala
de caçonete de prata, que não era outra pessoa se não o próprio, o ansiado, o
estimado, o inestimável, o venerável, o insubstituível, Barão do Calvário
(Alfredo da Silva Coutinho), mui digno Grão-mestre da irmandade do “Grupo do
Calhau Provisório”.
Sob
o palio, começava de imediato um beija-mão que todos gostosamente executavam. E
perguntava o Barão:
-
Então e porque é que me “fizésteis” vir aqui de tão longe, sofrendo os horrores
destes subterrâneos pestilentos, cheios de ratos e humidade! Há mais de duas
horas que caminho. A parte do túnel debaixo do rio Douro está toda alagada… As
velas apagaram-se tantas vezes que acabei por gastar os fósforos e tive de
caminhar às escuras. Por mais de meia hora andei às apalpadelas para chegar cá!
Enfim, uma grande maçada.
Enquanto
falava, ia sacudindo dos ombros e das mangas, cuidadosamente, usando as luvas brancas
como se de escova se tratasse, o pó da cal e a terra com que se tinha sujado
propositadamente debaixo do palco. E o Zé Maria, sempre ele:
-
Saiba Vossa Senhoria, Venerável Grão-Mestre, que temos aqui um eventual novo
membro da nossa irmandade, um verdadeiro “Porta”!
-
O quê? E “achaindes” que ele reúne as condições para a total devoção à nossa
causa?
-
Já o avisamos dos sacrifícios, da dedicação, do secretismo, da total devoção e
das provas que tem de prestar para ser iniciado no nosso meio!
-
E já avaliaram da sua família, das suas origens, do seu estofo moral e do
merecimento eventual de tal benesse?
-
Sim Venerável Grão-mestre. Foi feita, por membros da nossa irmandade, uma
investigação aturada sobre o pretendente.
Perante
a revelação de uma investigação familiar, o tal candidato tremia como varas
verdes.
-
E a que conclusão “chegásteis” vós?
Saiba
Vossa Senhoria, Venerável Grão-Mestre, que o pretendente apresenta grandes
insuficiências como candidato, mas o Conselho da Irmandade, reunido
secretamente em plenário e neste local, antes de ontem, concluiu que, se ele
responder adequadamente a todas as provas da iniciação, poderá ser acolhido do
nosso seio.
-
Pois se assim o “achásteis” vós, que seja iniciada a cerimónia.
Iniciava-se
então uma sessão de “espiritismo” para verificação da “aura” do “Porta”,
durante a qual ele tinha de dançar, imitando os movimentos do esqueleto,
supostamente movimentado pelo espírito de um dos antepassados do grupo. A
música de acompanhamento da dança, cantada pelos presentes, era a muito
conhecida:
“Ora
ponha aqui, ora ponha aqui o seu pezinho/ ora ponha aqui, ora ponha aqui ao pé
do meu/ e ao poisar e ao poisar o seu pezinho/ e um beijinho e um beijinho lhe
dou eu….”
Debaixo
do palco, iam puxando as linhas pretas conforme lhe desse na gana, e o mais
possível de acordo com a música, enquanto o “Porta” fazia os movimentos mais
desesperados para imitar o movimento do “além”, perante as risadas desenfreadas
dos presentes. E o Barão descontraía a sessão com uns “Riainde-vos” seguido de
um tonitruante “Calainde-vos”. Um fartote de gozo!
O
próprio Barão tinha a deferência de informar o “Porta” que tudo aquilo era para
que os vizinhos não desconfiassem do que ali se passava.
Acabada
a sessão de espiritismo, o Sr. Barão dirigia-se para a mesa, sobre palco, nela
se sentando na presidência, devidamente acolitado pelo secretário e tesoureiro
da organização.
Começava
então a suposta leitura da correspondência recebida desde a última sessão, em
que, Zé Maria, de improviso e perante umas folhas de papel em branco, ia
discorrendo, com espantosa verborreia, cheia de graça natural, um conjunto de
agradecimentos, pedidos, notícias e outros eventos considerados oportunos, que
a sua extraordinária capacidade criativa ia ditando. Os assuntos eram sempre
relacionados com necessidades de dinheiro. A cena e os disparates faziam fungar
de riso todos os membros da assembleia, e então, para descontrair a sessão,
comandava o Barão de novo:
-
“Riainde-vos” e, após a descarga de riso, outro tonitruante “Calainde-vos”.
Por
vezes o Sr. Barão, perante um pedido de dinheiro de pequena monta, exagerava e
dizia para o secretário.
-
Carregue nisso homem, carregue nisso. Dê-lhe três contos!
Perante
as risadas gerais, o acompanhante do futuro “acólito” ia-lhe sempre sussurrando
ao ouvido:
-
Não estranhe homem, não estranhe que as risadas são só para disfarçar, por
causa dos vizinhos.
Terminado
o despacho burocrático, iniciava-se a procissão cerimonial. O Barão do Calvário
colocava-se debaixo do palio suportado pelos seis confrades encartuchados, e
todo o grupo, em procissão ritual, com o “Porta” atrás e o Zé Maria à frente
agitando o turíbulo do incenso, rodava em sucessivas voltas, em torno daquela
sala, enquanto todos os presentes entoavam uma lamuriosa cantilena que dizia:
-
O culpado é o “Porta”!
Durante
toda esta procissão, o macabro esqueleto, bem accionado pelo seu jovem
manipulador, desempenhava um papel fundamental de pressão psicológica sobre a
iniciação do “Porta”. O movimento à luz das velas, daquele tétrico espólio,
deveria constituir algo de verdadeiramente aterrador para o candidato a
iniciado.
-
É chegada a altura de venerarmos o nosso fundador. Tragam o “Cranéu do nosso nobre ancião progenitor
- comandava o Barão.
Com
uma postura extremamente preparada, estudada e beatífica, o Zé Maria, removia o
“Cranéu” do santuário em que estava
em exposição. A “caveira” havia sido, previamente, besuntada com uma ligeira
camada de um produto humano de cor castanha, de consistência pastosa, de odor
penetrante e desagradável e de expelição obrigatória, normalmente quotidiana.
A
procissão terminava junto a uma espécie de altar onde o “Cranéu do nobre ancião
fundador” era depositado, com todas as honras.
-
Leia-se a "Oração de Sapiência".
No
mais profundo e reverente silêncio dos presentes, o Zé Maria lia uma oração,
por si concebida e redigida, um verdadeiro monumento ao gongorismo
“verborreico”, repleta de palavras inexistentes mas extremamente sonoras e
redundantemente extravagantes. (…)
Acabada
a oração de sapiência processava-se, formalmente, a iniciação do candidato.
-
Proceda-se à vassalagem ao “Cranéu”, tornava o barão.
E
o “Mestre-de-cerimónias”, que não era outro senão o mirabolante e engenhoso Zé
Maria, de costas para o “Porta”, ajoelhava e simulava um beijo no escultórico
artefacto. E, virando-se, orientava o “iniciado”:
-
“Porta”, ajoelhe! Beije o “Cranéu nobilíssimo”.
Ele
assim o fazia, enquanto o “Mestre-de-cerimónias” e os restantes “Calhaus”
verificavam, perdidos de riso, se ele tocava ou não os lábios em tão “sagrado”
“ícone”. Com repugnância, mas sem hesitações, o “Porta” beijava mesmo tal
objecto de culto, pois que a tanto o obrigava a ganância do futuro risonho. O
secretário, prontamente, entregava-lhe um lenço e dizia-lhe:
-
“Alimpe-se” .
Iniciava-se
um interrogatório feroz e ridículo, com perguntas às quais não era dado tempo
de resposta, sendo estas, pelo contrário, respondidas de imediato com
disparates saídos da fértil imaginação de Zé Maria e que faziam escangalhar a
rir a “nobel” assembleia:
-
O “Porta” sabe quem era Maria Antonietta? E perante a indecisão o Zé Maria
completava:
-
Era uma mulher que andava pelas ruas de Paris a tocar trombeta!
Finalmente
a prova decisiva. O “Porta” era posto perante o dilema de as suas raízes
familiares terem sido consideradas de qualidade inaceitável pelos “irmãos”.
Era-lhe então perguntado se ainda estava disposto a entrar, de facto, para a
Sociedade Iniciática do Calhau Provisório.
-
Sim! respondia ele de imediato e sem hesitações
-
Mas isso passa pela eliminação de certos aspectos familiares que foram
considerados contrários à dignidade, ao secretismo e aos objectivos da nossa
Sociedade - afirmava-lhe o “Mestre-de-cerimónias”, irmão Zé Maria,. Teria que
acabar com esses laços, de maneira definitiva e de modo radical. Só assim
haveria a possibilidade de isso não vir a afectar a pureza da irmandade.
-
Sim!, respondida sem hesitar o “Porta”
O
tom das perguntas e das tarefas a desempenhar, iam subindo de exigência e
dramatismo, ao sabor do extraordinário espírito inventivo e do improviso do Zé
Maria, o que deixava todos ao “calhaus” completamente desaustinados de riso,
mas o “Grão-mestre”, sempre oportuno, acrescentava:
-
Olhe, não ligue aos risos que isto é só para disfarçar, para os vizinhos não
saberem o que aqui se passa!
De
chofre, o Secretário perguntava ao “Porta”:
-
Estás disposto a entrar mesmo que tenhas de matar alguém?
-
Sim, respondia(m todos) sem hesitações.
-
Pois fique sabendo que a sua mãe não tem condições para que possa aceder a esta
Sociedade. Tem de ser eliminada!
Que
sim! Que estava disposto a tudo para pertencer a semelhante irmandade,
respondiam invariavelmente todos os “Portas” que por lá passaram, baixando ao
máximo da degradação humana, pela ganância do dinheiro fácil e abundante.
Atingia-se
o paroxismo quando lhe era proposta que, para não despertar suspeitas, fosse
ele o executor da própria mãe, embora utilizando meios e condições facilitados
pelos “Calhaus”. A tudo se sujeitava o ganancioso, completamente vendido à
ideia do dinheiro da caixa de madeira.
Os
pormenores do assassínio eram então combinados e acordado o dia e o modo. Todos
os que por lá passaram e foram muitos, aceitavam o crime sem pestanejar,
convictos que ficariam impunes, cobertos pela capacidade de realização e pelo
poder, da irmandade e do dinheiro.
Era
esta a mais terrível prova porque passava o candidato, e também a última, no
final da qual, era lida de novo a oração de sapiência.
Terminada
a oração, agora de homenagem ao “iniciado”, o candidato era considerado membro
do grupo e formalmente empossado, recebendo, de joelhos, como mandavam as
regras da cavalaria, primeiro as insígnias da irmandade — um pequenino calhau
envolvido numa malha de fios (para pendurar na lapela) e, por último, o mais
desejado presente e a razão de todo aquele processo: Um pequeno, mas pesado
embrulho, lacrado e bem recheado. E era enviado de volta ao quotidiano.
Recomendava-se-lhe,
expressamente, que disfarçasse e não abrisse o pacote senão no dia seguinte e
já em casa, quando estivesse em segurança, para ninguém ver ou desconfiar. No
caminho de regresso, para manter o secretismo de tal sociedade, e uma vez que
ele já pertencia à irmandade, tinha de repetir, agora sozinho, as precauções
tomadas na chegada. Avisavam-no ainda que, depois de sair, na rua, não devia
olhar para trás.
Ele
lá ia. Alguns momentos após a sua saída, os “Calhaus” presentes, seguiam-no
dissimuladamente.
Estugando
o passo, o “Porta” ansiava chegar rapidamente ao fim da Rua do Bonfim e, nessa
altura, depois de olhar atentamente à sua volta, sem avistar ninguém (porque
não há maior cego do que aquele que não quer ver) junto ao primeiro candeeiro a
gás, abria precipitadamente o embrulho. Lá dentro encontrava uma carta e uma
caixa de cartão, onde, bem almofadados por algodão, encontrava uma quantidade
de pequenos calhaus. Genericamente, a carta era uma grande lição de moral, um
verdadeiro libelo acusatório à sua falta de dignidade e à sua imensa ganância —
que o tornava capaz de admitir assassinar a própria mãe. Na carta chamava-lhe
pessoa sem escrúpulos e outros epítetos semelhantes, explicavam-lhe que tudo
não passara de um logro, em que ele apenas caíra devido à sua desmedida ambição
e à sua falta de honra e de princípios. Terminava de modo sentencial, afirmando
que “só o trabalho é digno e que apenas dele pode advir o dinheiro!”
A
frustração de todos os que foram submetidos a tal “tratamento” era tremenda e,
a sua primeira reacção, era voltar lá atrás, à casa onde havia entrado, mas,
após reconsiderarem algum tempo, provavelmente por vergonha ou por considerarem
que aquilo apenas constituía mais uma prova que era forçoso passar, demandavam
a sua habitação.
Acabavam
quase todos por lá voltar mais tarde, encontrando o Sr. José Maria na sua
carpintaria e ao reconhecerem-no, pediam-lhe encarecidamente que, de facto, os
deixassem entrar, na tal irmandade. A estes era muito difícil retirar-lhes tal
ideia da cabeça.
Com
o desenvolvimento da experiência das sessões extraordinárias e até para evitar
que os “Portas” reconhecessem o local da cerimónia, incomodando o Zé Maria, os
sócios passaram a recolhê-los de automóvel, no Campo 24 de Agosto e mascarados,
vendavam-lhe os olhos e obrigavam a viatura a dar várias voltas ao jardim, para
simularem percorrer uma grande distância. Na saída repetia-se o processo
inverso, sempre de olhos vendados.
Estas
cerimónias “iniciáticas” deveriam ter tanta graça, que havia um juiz do Supremo
Tribunal em Lisboa, que, se avisado antecipadamente, vinha de comboio,
propositadamente, para a elas assistir. Também um Governador Civil do Porto
esteve presente, pelo menos uma vez, numa dessas sessões. (…)”
A
partir de 1916 a Sociedade começou a ressentir-se com o desaparecimento e
afastamento de alguns dos seus membros, devido a doenças e falecimentos, embora
com a força de José Maria se tentasse manter pelo seu voluntarismo e orientação
à frente desta instituição.
Esta
força de vontade e trabalho ainda se incentivaram através de actividades e
espectáculos de teatro, de música e actos recitativos.
O
cartão de identidade veio a substituir o anterior símbolo original dependurados
na lapela e as sessões mais relevantes do “Porta” continuaram com o mesmo
protagonismo, interesse e curiosidade das pessoas que buscavam um lugar nas
sessões da Sociedade, logo que a notícia era divulgada.
Cartão de sócio
retirado da revista O Tripeiro, n.º 6 - Vol. I (maio 1982)
Finalmente
em 1922 acabou por se extinguir a sociedade, ora por mudanças de vida e de
novas responsabilidades de alguns ora pelo surgimento de uma outra sociedade,
na Lomba, cujo teor e a má reputação terá deixado marcas negativas naquela
época.
Estas
associações, como muitas outras agremiações levaram à época, contributos sociais,
culturais e atividades, pelos diversos locais da cidade de modo a se
proporcionarem contactos e laços de amizade pela comunidade.
A
quem ler esta divulgação e conheça mais histórias desta associação agradeço a
sua divulgação.
Grato
Informação retirada de:
- O Tripeiro, nº. 6, Volume I (maio de 1982)
- livro de família "Origens - Pesquisa em torno de uma grande família"
Mais informações encontradas em O Tripeiro (não lidas)
- Sociedade do Calhau Provisório - Série I / Ano II / pág. 181 - 233
- Sociedade do Calhau Provisório - Série V / Ano IV / pág. 264 - 288
- Sociedade do Calhau Provisório - Série V / Ano XV / pág. 128
- Calau - Série I / Ano II / pág. 81